sábado, 10 de outubro de 2009

A NOVA AQUARELA

Os desenhos ficavam sempre expostos na parede. Não eram grudados em linha reta, tudo mantinha uma desordem, mas mesmo na bagunça se acha alguma lógica. Renato organizava seus desenhos dessa forma. Uns mais para baixo, outros em cima, na diagonal, os olhos dos observadores fariam a ligação necessária para o entendimento. Os primeiros a contemplarem os traços eram os pais. Renato, apesar de ter somente oito anos, tinha uma visão artística aguçada. Não tinha muitos brinquedos, não entendia muito bem a utilidade deles. Sua brincadeira preferida era rabiscar, pintar, desenhar. Era um fascínio transformar o branco em algo colorido, ou as vezes, cinza. Tudo o que ele queria estava diante de uma folha de papel e seus lápis. O tempo para se ter o que quisesse era o tempo do início do desenho ao seu final. Pronto. Estaria ali o seu bosque. Com altas árvores verdes, algumas manchas de flores, folhas secas no chão, terra úmida, sentia até o cheiro quando chegava mais próximo do papel. Depois do desenho, mostrava aos pais. Eles enchiam os olhos ao ver aquele bosque. Aquilo fazia eles lembrarem das fantasias de seus oito anos. O pai pensava em ser um desbravador, queria conhecer o mundo todo, mas acabou preso a cidadezinha onde Renato nasceu. A mãe queria ser enfermeira. Ela conseguiu. E os dois pensavam no prodígio que tiveram. Quem diria que um menino de oito anos desenhasse tão bem assim? Renato conseguia com muita facilidade. Os dois o incentivavam e ele logo começaria a ter aulas. É preciso aprender para desenvolver melhor os talentos naturais. Sempre foi assim. A cada folha uma nova surpresa. Um novo espanto, novos sorrisos de orgulho e mais um desenho fixado a parede.

Além dos olhos dos pais, de uns amiguinhos da escola, outros olhos admiravam as obras de Renato. Em frente a coleção de obras de artes mirim ficava a estante. Em uma prateleira inteira, o menino guardava todos os seus lápis de cor. Ele possuía dúzias e mais dúzias, todos os tipos de cores possíveis – algumas que até desconheço – todas estavam reunidas naquele espaço. Depois de colorirem os papéis, todos eram guardados e separados. Os tons de vermelhos com os seus, os de azul, verde, e assim por diante. Isso contribuía para as richas entre as cores. Quando o desenho era grudado na parede as brigas começavam. O verde dizia que a sua família era a mais importante porque coloria o bosque inteiro de Renato. Estava em todas as folhas das árvores, nos rastros do chão, nos matos ao redor dos troncos, até tinha um pouco nas folhas secas. O bosque era tomado pelo verde. E a cor e os membros da família, o claro, o escuro, o esmeralda, o abacate, o grama, todos ficavam em alvoroço, dizendo como eram superiores naquele desenho.

Quando Renato desenhou o mar, foi a vez da família do azul dar o tom profundo de suas vozes. O azul céu reinava em cima e o azul médio e o escuro dominavam a parte debaixo da folha. Os demais tons da família também davam algumas pitadas sobre o desenho. Era o mar mais azul, o céu mais azul, um grande e imenso orgulho para a família inteira.

Quem achou que ficaria para trás foi finalmente contemplado. O vermelho obteve o seu dia de glória, assim como o amarelo. Ambos coloriram um deserto. O calor era medido pelo vermelho escuro e o laranja, a aridez estava nos grãos de areia amarela. Quanta imponência e supremacia. A família do vermelho junto com a do amarelo vibraram tanto, fizeram até uma festa, e no final acabou em briga. A parceria foi trocada por rivalidade, quem aparecia mais no desenho? Os amarelos cuspiram sobre os vermelhos dizendo que a areia era toda sua, e cobria boa parte da folha. Os vermelhos se sobrepunham aos amarelos porque seus tons eram mais agressivos e estavam no topo do desenho, sendo assim, a família do amarelo estava vencida. Uma discussão que não levou a nada, somente a mais desavença entre as cores.

Enfim, Renato começou suas aulas de desenho. No primeiro dia, não fez muita coisa, no segundo também não, no terceiro aprendeu alguma coisa, no quarto nem foi, não porque não quis, a doença impediu. O quinto fez toda a diferença para ele, principalmente para as cores da estante.

Na sala de aula havia umas pinturas estranhas, sem forma alguma, nada era simétrico, tudo muito colorido, aquilo chamou a atenção do menino. A professora lhe explicou, de forma bem simples, que eram quadros abstratos. Naquele tipo de pintura não era importante desenhar uma laranja da forma que se vê um laranja, redonda, com casca fina ou grossa, não interessa e sim como você imagina a laranja, ela pode ser quadrada, triangular, somente manchas, seria a sua laranja. Então, Renato despertou! A sua imaginação poderia ir muito além daquilo que estava exposto aos seus olhos. Ele pensou que seus desenhos tinham que ser parecidos com fotografias, por isso caprichava tanto. O quinto dia de aula mudou tudo dentro de seus pequenos olhos.

Chegou em casa apressado e foi para o quarto desenhar. Juntou o azul, o vermelho, o verde e o amarelo na pequena mão. Arrumou uma folha em branco. Pensou no mundo e iria desenhá-lo. Com os quatro lápis foi fazendo movimentos circulares sobre o papel. No início girou devagar, fraco. Mais para o meio, eram círculos velozes e fundos. Na extremidade direita, círculos enormes e profundos. Virou a folha de ponta-cabeça e fez os mesmos movimentos com a mesma intensidade, a mesma pressão dos quatro lápis sobre a folha. Não demorou muito e tinha colorido o mundo por completo. Foi mostrar o desenho aos pais. Eles não entenderam muito bem e ele explicou. Era uma pintura abstrata. “É o mundo pai! É o mundo mãe!”. Eles apenas concordaram. “Sim... É o mundo, filho”. Em seguida, pegou fita adesiva e colou o desenho no topo da parede, acima de todos os outros e repetia: “É o mundo!”. Ficou ali por algum tempo, admirando o resultado das cores, elas que tinham pintado o mundo de Renato. Depois os olhos de fascínio foram trocados pelo banho.

Pasmos estavam os lápis de cor diante daquele desenho. Ninguém conseguia falar qualquer palavra. Nada. A mudez tomou conta da boca de cada família de cores. Atônitos, todos. O mundo do artista era colorido, e aquelas quatro cores primárias: azul, vermelho, amarelo e verde, formavam as demais cores de cada família. O azul percebeu o quanto seus tons mais claros dependiam do amarelo e do verde. A família do vermelho não tinha o que dizer depois de ver que o laranjado vinha da sua mistura com o amarelo, quem tanto desprezou. E o verde se viu refém do azul e do amarelo. Para a criação das outras cores cada família dependia uma da cor da outra. Todos se olharam, se cumprimentaram e finalmente perceberam que o mundo é, de fato, colorido.

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